Capítulo 2 - Transformadores
2.1 Introdução aos Transformadores
Esta secção introduz o transformador como um dispositivo composto por dois ou mais enrolamentos acoplados por um fluxo magnético comum. Quando uma tensão alternada é aplicada ao enrolamento primário, gera-se um fluxo magnético alternado que induz uma tensão no enrolamento secundário. A razão entre as tensões depende diretamente da razão de espiras entre os enrolamentos.
Apesar de o acoplamento magnético poder ocorrer no ar, o uso de um núcleo ferromagnético (normalmente de aço silício) aumenta significativamente a eficiência do acoplamento, reduzindo perdas e concentrando o fluxo. Para minimizar as correntes de Foucault no núcleo, os transformadores usam núcleos laminados.
Dois tipos de construção comuns:
-
Tipo núcleo: os enrolamentos são colocados em dois braços de um núcleo em forma de E;
-
Tipo carcaça (shell): os enrolamentos são concentrados num único braço central, com o fluxo a circular por dois caminhos laterais.
Os enrolamentos também geram fluxo de dispersão, que não liga ambos os enrolamentos. Este fluxo, embora menor, influencia o comportamento do transformador. Para o reduzir, os enrolamentos são geralmente intercalados ou enrolados concentricamente.
2.2 Condições em Vazio
Nesta secção analisa-se o funcionamento do transformador com o secundário em aberto. Quando uma tensão alternada é aplicada ao primário, uma corrente de excitação (ou de magnetização), pequena mas necessária, estabelece o fluxo alternado no núcleo.
Este fluxo induz uma força electromotriz (f.e.m.) no primário, que se opõe à tensão aplicada, e a sua amplitude é determinada pela frequência, número de espiras e tensão aplicada. Assume-se uma forma de onda sinusoidal para simplificar a análise, originando a fórmula:
Assim, para uma tensão aplicada sinusoidal, o fluxo máximo no núcleo depende apenas da tensão, frequência e número de espiras.
A corrente de excitação não é perfeitamente sinusoidal devido às características não-lineares do ferro (histerese e saturação), contendo harmónicas, sendo a terceira harmónica a mais significativa. Apesar disso, como esta corrente é geralmente pequena (1–2% da corrente nominal), pode ser modelada como uma corrente sinusoidal equivalente para efeitos de análise.
Esta corrente pode ser dividida em:
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Componente de perdas no núcleo (em fase com a f.e.m.);
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Corrente de magnetização (em quadratura com a f.e.m., responsável pela criação do fluxo).
A potência dissipada nas perdas do núcleo é dada por:
2.3 Efeito da Corrente no Secundário; Transformador Ideal
Esta secção introduz o transformador ideal, no qual:
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Não há perdas no núcleo;
-
O fluxo de dispersão é nulo;
-
A permeabilidade do núcleo é infinita (não requer corrente de excitação);
-
As resistências dos enrolamentos são desprezáveis.
Para este modelo, a tensão induzida no secundário é proporcional ao número de espiras:
Quando uma carga é ligada ao secundário, uma corrente flui, gerando uma força magnetomotriz (f.m.m.) que tende a alterar o fluxo. No entanto, o primário reage com uma corrente que compensa exatamente a f.m.m. secundária, mantendo o fluxo constante. Assim:
O transformador ideal conserva a potência:
Além disso, as impedâncias vistas do primário ou do secundário relacionam-se com o quadrado da razão de espiras:
Este princípio permite simplificar a análise de circuitos com transformadores, referindo tensões, correntes e impedâncias para um dos lados do transformador, eliminando a necessidade de representar explicitamente o transformador ideal no circuito.
2.4 – Reatâncias e Circuitos Equivalentes do Transformador
Nesta secção, o foco passa do transformador ideal para o transformador real, que apresenta imperfeições como:
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Resistência dos enrolamentos,
-
Fluxo de dispersão,
-
Corrente de excitação finita,
-
Perdas no núcleo.
Modelação Física e Circuito Equivalente
O circuito equivalente baseia-se em considerações físicas. O fluxo total no primário é dividido em duas componentes:
-
Fluxo mútuo, que atravessa o núcleo e liga ambos os enrolamentos;
-
Fluxo de dispersão, que só liga um dos enrolamentos (não contribui para a transferência de energia).
Para representar as perdas, o circuito equivalente incorpora:
-
Resistência do enrolamento primário ;
-
Reatância de dispersão no primário ;
-
Ramo de excitação, com:
-
Resistência de perdas no núcleo ;
-
Reatância de magnetização , associada à criação do fluxo.
-
O ramo de excitação está ligado em paralelo com a tensão induzida no primário , e representa a corrente de excitação (), que se divide em:
-
Corrente de perdas no núcleo ();
-
Corrente de magnetização ().
Do lado secundário, surgem efeitos semelhantes:
-
Resistência de perdas no enrolamento secundário ;
-
Reatância de dispersão no secundário ;
-
Tensão induzida ;
-
Corrente .
Transformação para um Único Lado
Para simplificar a análise, todos os parâmetros e grandezas (correntes, tensões, impedâncias) podem ser referidos ao lado primário ou ao lado secundário, eliminando a necessidade de representar explicitamente o transformador ideal. Para isso, utilizam-se as relações de transformação:
-
Correntes:
-
Tensões:
-
Impedâncias:
Este modelo dá origem ao circuito equivalente em T, com os elementos agrupados:
-
Impedâncias em série: , ;
-
Ramo de excitação em derivação (Rc e Xm).
2.5 – Aspectos de Engenharia na Análise de Transformadores
Esta secção trata das simplificações práticas do circuito equivalente, usadas em análises de engenharia. Como os transformadores reais geralmente operam com perdas reduzidas e corrente de excitação pequena, é comum adotar modelos aproximados, de acordo com o nível de precisão necessário.
Modelos Aproximados
São apresentados quatro modelos principais:
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Circuito em T completo:
Contém todas as impedâncias, transformador ideal e ramo de excitação. Usado quando é necessária precisão elevada. -
Circuito em "cantilever":
O ramo de excitação é movido para um dos lados, ficando junto aos terminais do primário ou do secundário. Esta simplificação ignora a queda de tensão da corrente de excitação nas impedâncias de dispersão — uma omissão geralmente desprezável. -
Modelo série simplificado:
Ignora totalmente o ramo de excitação, mantendo apenas a impedância série . Adequado para transformadores grandes, onde a corrente de excitação é muito pequena. -
Transformador ideal:
Todos os efeitos não ideais são desprezados. Usado em situações de baixa exigência ou como primeira aproximação.
Cálculos Típicos em Engenharia
Duas grandezas importantes em engenharia:
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Regulação de tensão:
Percentagem de variação da tensão aos terminais do secundário entre carga nula e carga plena, com a tensão do primário constante. Uma regulação baixa indica melhor qualidade. -
Rendimento (eficiência):
Considera perdas no cobre (I²R) e perdas no ferro (constantes à tensão nominal).
Ensaios para Obtenção de Parâmetros
Dois ensaios permitem determinar os parâmetros dos modelos:
-
Ensaio em curto-circuito (secundário curto-circuitado, tensão reduzida no primário):
Mede-se a impedância série equivalente . A corrente é de valor nominal. As perdas medidas são as perdas no cobre. -
Ensaio em vazio (secundário em aberto, tensão nominal no primário):
Mede-se o ramo de excitação: e . As perdas medidas correspondem às perdas no ferro. A corrente é a corrente de excitação.
Estas medições permitem caracterizar completamente o transformador e construir o modelo equivalente adequado para qualquer condição de operação.
2.6 – Autotransformadores e Transformadores com Enrolamentos Múltiplos
2.6.1 Autotransformadores
Os autotransformadores diferem dos transformadores comuns por terem uma única bobina partilhada entre o primário e o secundário. Embora possam transformar tensões, correntes e impedâncias da mesma forma, não oferecem isolamento eléctrico entre entrada e saída, o que pode ser uma desvantagem em algumas aplicações.
-
Vantagens: Menor reactância de fuga, menores perdas, corrente de excitação reduzida e custo mais baixo, especialmente para relações de transformação próximas de 1:1.
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Exemplo 2.7: Demonstra como um transformador de 50 kVA, ao ser ligado como autotransformador, pode atingir uma potência equivalente de 550 kVA devido à parte da potência ser transferida por condução directa (ligação comum) e não por acoplamento magnético. A eficiência é extremamente elevada (99,82%) porque as perdas permanecem as mesmas mas a potência útil aumenta.
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Conclusão: A potência aparente de um autotransformador é maior que a de um transformador comum, mas a potência realmente transformada é a mesma.
2.6.2 Transformadores com Enrolamentos Múltiplos
São transformadores com três ou mais enrolamentos, muito utilizados em sistemas que necessitam de interligar múltiplas redes com diferentes níveis de tensão.
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Aplicações comuns: Fontes de alimentação com múltiplas saídas, distribuição doméstica (com dois enrolamentos de 120 V ligados em série para fornecer 240 V), e sistemas de subestações com enrolamento terciário para serviços auxiliares, compensação de potência reactiva ou atenuação de harmónicas.
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Modelação: Exige circuitos equivalentes mais complexos, pois é necessário considerar as impedâncias de fuga entre cada par de enrolamentos. Normalmente, todos os parâmetros são referidos a uma base comum ou expressos em sistema por unidade (pu).
2.7 – Transformadores em Circuitos Trifásicos
Em sistemas trifásicos é comum agrupar três transformadores monofásicos ou usar um único transformador trifásico.
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Ligações típicas:
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Y-Y
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Y-Δ
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Δ-Y
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Δ-Δ
Cada ligação tem características específicas quanto a tensão, corrente e presença de neutro.
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Ligação Y-Δ: Muito usada para redução de tensão, permitindo ligação do neutro à terra no lado de alta tensão.
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Ligação Δ-Δ: Permite operação com apenas dois transformadores (ligação em "V") em caso de manutenção, com potência reduzida (~58%).
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Exemplo 2.8: Cálculo da tensão na carga de uma ligação Y-Δ trifásica com queda de tensão ao longo da linha. Mostra como os cálculos podem ser feitos por fase, facilitando a análise.
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Exemplo 2.9: Análise de uma corrente de curto-circuito trifásica. Mostra o cálculo das correntes nos vários pontos do sistema (primário, secundário e terminais de carga), com ênfase nas implicações da ligação Δ-Y.
2.8 – Transformadores de Tensão e Corrente (Instrumentação)
Esta secção trata dos transformadores de potencia (PT) e transformadores de corrente (CT), utilizados para medição precisa em sistemas de potência, reduzindo as grandezas reais a níveis seguros e manejáveis para instrumentos (ex.: 120 V e 5 A).
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Transformador de Potencia (PT):
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Idealmente mede a tensão sem carregar o circuito (impedância de carga alta).
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São introduzidos erros pelo fluxo de excitação e pelas impedâncias dos enrolamentos.
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O erro pode ser minimizado com reactância de magnetização elevada e impedâncias de enrolamento baixas.
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Transformador de Corrente (CT):
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Idealmente mede a corrente apresentando-se como curto-circuito ao sistema (impedância de carga baixa).
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Os erros são causados pela corrente de magnetização não transferida para o secundário.
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Para minimizar os erros, requer impedância de magnetização elevada e baixas impedâncias no secundário.
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2.9 – O Sistema por Unidade
O sistema por unidade é uma técnica de normalização em que grandezas eléctricas (tensão, corrente, impedância, potência, etc.) são expressas como frações decimais dos seus valores base. Este sistema é amplamente utilizado na análise de sistemas eléctricos de potência, particularmente em redes com muitos transformadores, linhas e máquinas.
Vantagens do sistema por unidade:
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Simplificação de cálculos: Os transformadores passam a ter relação de transformação 1:1 quando as tensões base são escolhidas de forma compatível, eliminando a necessidade de referir impedâncias entre lados.
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Uniformidade de valores: Os parâmetros eléctricos, quando expressos em pu com base nos dados nominais dos equipamentos, tendem a variar dentro de intervalos reduzidos, facilitando comparações.
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Facilidade em análises de sistemas complexos: Os cálculos tornam-se mais directos e os erros mais fáceis de detectar.
Definições fundamentais:
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Cada grandeza por unidade (pu) é dada por:
valor pu = valor real / valor base
-
Os valores base estão relacionados entre si:
-
Potência base:
S_base = V_base × I_base
-
Impedância base:
Z_base = V_base / I_base = V_base² / S_base
-
-
Apenas duas grandezas base são escolhidas livremente (normalmente tensão e potência), e as restantes derivam dessas.
Aplicações:
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Usado tanto em análises monofásicas como em sistemas trifásicos.
-
Em sistemas trifásicos:
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S_base_trifásica = 3 × S_base_fase
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V_base_linha-neutro = V_base_linha-linha / √3
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Z_base = V²_base / S_base
-
Exemplos e Problemas:
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Exemplo 2.12: Mostra a conversão de um circuito equivalente de um transformador para por unidade em ambos os lados (alta e baixa tensão), com simplificação para eliminar o transformador ideal (1:1).
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Exemplo 2.13: Demonstra que as impedâncias e correntes expressas em pu são iguais em ambos os lados do transformador quando as bases são escolhidas adequadamente.
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Exemplo 2.14: Repete o cálculo da corrente de curto-circuito trifásico de um exemplo anterior, mas usando exclusivamente valores por unidade.
-
Exemplo 2.15: Usa o sistema por unidade para determinar a tensão no lado de alta tensão de um transformador, dado o consumo da carga e a impedância da máquina.
2.10 – Resumo
Embora os transformadores sejam dispositivos estáticos (não envolvem movimento mecânico), eles são fundamentais no estudo de sistemas electromecânicos por partilharem muitos conceitos com máquinas rotativas, como:
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Fluxo magnético,
-
Corrente de excitação,
-
Fluxo mútuo e de fuga,
-
Indutâncias e f.m.m. (força magnetomotriz).
Pontos principais:
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O fluxo mútuo no núcleo é responsável pela indução de tensões proporcionais ao número de espiras.
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Nas máquinas rotativas, o fluxo atravessa uma folga de ar entre estator e rotor, mas o princípio de indução mantém-se.
-
A diferença chave é que nas máquinas há movimento relativo, o que gera uma componente adicional na tensão induzida: a tensão de velocidade, fundamental na conversão de energia electromecânica (estudada no Capítulo 3).
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A f.e.m. (força electromotriz) de contraposição no enrolamento primário deve equilibrar a tensão aplicada, tal como nas máquinas AC.
-
A corrente no primário ajusta-se para garantir que a f.m.m. total produz o fluxo necessário — comportamento idêntico ao das máquinas AC.
-
O fluxo de fuga, presente tanto em transformadores como em máquinas rotativas, origina reactâncias de fuga que reduzem o fluxo mútuo.
-
Os testes de caracterização (circuito aberto e curto-circuito) são semelhantes em ambos os tipos de equipamento.
-
O modelo de saturação do circuito magnético também segue o mesmo raciocínio: assume-se linearidade nas reactâncias de fuga e saturação apenas no circuito magnético principal.
2.11 – Variáveis do Capítulo 2
Tabela de símbolos e unidades usadas ao longo do capítulo, agrupando variáveis e subscritos com os seus significados. Exemplos:
Variáveis Principais
Símbolo | Significado | Unidade |
---|---|---|
λ | Fluxo concatenado | Weber (Wb) |
ω | Frequência angular | radianos/segundo (rad/s) |
ϕ, ϕₘₐₓ | Fluxo magnético, fluxo magnético máximo | Weber (Wb) |
Φ̂ | Fluxo magnético (amplitude complexa) | Weber (Wb) |
θ | Ângulo de fase | radianos (rad) |
Bₘₐₓ | Densidade de fluxo magnético de pico | Tesla (T) |
e | Força electromotriz (f.e.m.), tensão induzida | Volt (V) |
E | Tensão | Volt (V) |
Ê | Tensão (amplitude complexa) | Volt (V) |
f | Frequência | Hertz (Hz) |
i, I | Corrente | Ampère (A) |
iϕ | Corrente de excitação | Ampère (A) |
Î | Corrente (amplitude complexa) | Ampère (A) |
Îc | Componente de perdas no núcleo da corrente de excitação | Ampère (A) |
Îm | Corrente de magnetização (amplitude complexa) | Ampère (A) |
Îϕ | Corrente de excitação (amplitude complexa) | Ampère (A) |
L | Indutância | Henry (H) |
N | Número de espiras | — |
Q | Potência reactiva | Volt-Ampère Reactivo (VAR) |
R | Resistência | Ohm (Ω) |
R_base | Resistência base | Ohm (Ω) |
t | Tempo | Segundo (s) |
v, V | Tensão | Volt (V) |
V_base | Tensão base | Volt (V) |
V̂ | Tensão (amplitude complexa) | Volt (V) |
VA | Volt-Ampère (potência aparente) | Volt-Ampère (VA) |
X | Reactância | Ohm (Ω) |
Z | Impedância | Ohm (Ω) |
ZΔ | Impedância equivalente em Δ | Ohm/fase (Ω/fase) |
Zϕ | Impedância de excitação | Ohm (Ω) |
ZY | Impedância equivalente em Y | Ohm/fase (Ω/fase) |
Subscritos Comuns
Subscrito | Significado |
---|---|
ϕ | Excitação |
b | Carga (burden) |
base | Valor base |
c | Núcleo (core) |
eq | Equivalente |
H | Lado de alta tensão |
l | Fluxo de fuga (leakage) |
l-n | Linha-neutro |
L | Lado de baixa tensão |
m | Magnetização |
max | Máximo |
oc | Circuito aberto (open circuit) |
pu | Por unidade (per unit) |
rms | Valor eficaz (root mean square) |
s | Envio (sending) |
sc | Curto-circuito (short circuit) |
tot | Total |