Capítulo 3: Representação de sinais periódicos em séries de Fourier
3.1 Perspectiva Histórica
Esta secção traça a evolução histórica da análise de Fourier, mostrando como a ideia de decompor fenómenos periódicos em somas de funções trigonométricas remonta à antiguidade (por exemplo, os babilónios na astronomia). No século XVIII, Euler estudou cordas vibrantes, introduzindo a ideia de modos normais como combinações de senos e cossenos. Bernoulli defendeu que todos os movimentos de uma corda poderiam ser representados assim, mas Lagrange criticou a validade para sinais com descontinuidades.
Joseph Fourier retomou o conceito no início do século XIX para estudar a propagação de calor, afirmando que qualquer fenómeno periódico poderia ser descrito por séries de senos e cossenos, mesmo com descontinuidades — uma ideia inovadora mas inicialmente controversa. Fourier enfrentou resistência (inclusive de Lagrange) e dificuldades para publicar o seu trabalho, mas a sua Théorie analytique de la chaleur (1822) tornou-se fundamental. Fourier foi além das séries, propondo a transformação integral (base do que hoje chamamos Transformada de Fourier) para sinais aperiódicos. O impacto do seu trabalho estende-se por múltiplas áreas da ciência, engenharia e matemática, incluindo tópicos como integração, séries temporais, difusão de calor, sinais sinusoidais em circuitos de corrente alternada, ondas marítimas e transmissão de rádio. Finalmente, o texto destaca que, para sinais em tempo discreto, a análise harmónica ganhou relevância com o desenvolvimento da Transformada Rápida de Fourier (FFT) nos anos 60, revolucionando a computação digital de séries de Fourier.
3.2 Resposta de Sistemas LTI a Exponenciais Complexas
Esta secção demonstra porque é que as exponenciais complexas são tão importantes na análise de sistemas lineares e invariantes no tempo (LTI). O ponto central é que uma exponencial complexa é uma função própria de um sistema LTI: a resposta do sistema a uma entrada exponencial é a mesma exponencial multiplicada por um factor constante (o valor próprio ou ganho de frequência do sistema).
Em termos contínuos, uma entrada gera uma saída , onde é a transformada de Laplace da resposta impulsional. No caso discreto, uma entrada gera uma saída .
Como consequência, qualquer sinal que possa ser escrito como combinação linear de exponenciais complexas pode ser analisado decompondo cada componente, aplicando a propriedade da sobreposição. Assim, se a entrada for uma soma de exponenciais, a saída será uma soma das mesmas exponenciais, escaladas pelos ganhos de frequência correspondentes. Esta ideia justifica a relevância das séries e transformadas de Fourier para representar sinais e estudar sistemas.
Inclui-se um exemplo de um sistema que apenas aplica um atraso de tempo, mostrando que a exponencial é efectivamente função própria — a saída é a entrada atrasada multiplicada por uma fase.
3.3 Representação de Sinais Periódicos em Tempo Contínuo (Série de Fourier)
Aqui é introduzida formalmente a Série de Fourier para sinais periódicos em tempo contínuo. Define-se que um sinal é periódico se para um período . O sinal pode ser expresso como uma soma de exponenciais complexas com frequências harmónicas múltiplas da fundamental:
com .
É demonstrado que combinações lineares de exponenciais harmonicamente relacionadas continuam a ser periódicas. Apresenta-se a relação entre exponenciais e senos/cossenos, mostrando como sinais reais podem ser escritos em forma trigonométrica.
Segue-se o processo de determinação dos coeficientes (análise) através de integração ao longo de um período, baseando-se na ortogonalidade das exponenciais. Também se ilustra a interpretação física de cada termo: o coeficiente representa a componente DC (média), enquanto os outros descrevem a energia distribuída pelas harmónicas.
Exemplos práticos incluem uma onda sinusoidal, uma combinação de senos e cossenos, e uma onda quadrada — mostrando como sinais com descontinuidades podem ser aproximados por somas finitas de harmónicas.
3.4 Convergência da Série de Fourier
Esta secção discute as condições sob as quais a Série de Fourier efectivamente converge para o sinal original. Euler e Lagrange duvidavam da validade de representar funções descontínuas com somas de funções contínuas. Fourier, no entanto, mostrou que mesmo sinais como a onda quadrada podem ser representados correctamente no sentido de energia (ou seja, o erro quadrático médio tende para zero).
São introduzidas condições práticas de convergência:
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Se um sinal for contínuo e de energia finita num período, a sua Série de Fourier converge.
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Para sinais descontínuos, são apresentadas as condições de Dirichlet: o sinal deve ter energia finita, variação limitada (número finito de máximos e mínimos por período) e um número finito de descontinuidades.
Se estas condições forem satisfeitas, a Série de Fourier converge para o sinal original em todos os pontos de continuidade e para a média dos limites laterais nos pontos de descontinuidade (ex. Gibbs phenomenon).
O famoso fenómeno de Gibbs mostra que, perto das descontinuidades, a soma parcial da Série de Fourier apresenta oscilações que não desaparecem, mas concentram-se cada vez mais junto à descontinuidade à medida que se somam mais harmónicas. Mesmo assim, a energia do erro global tende para zero.
3.5 Propriedades da Série de Fourier em Tempo Contínuo
Esta secção organiza e descreve as propriedades fundamentais das Séries de Fourier para sinais periódicos em tempo contínuo. Estas propriedades são essenciais para simplificar cálculos e interpretar resultados.
As principais propriedades abordadas são:
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Linearidade: A Série de Fourier é linear. Se dois sinais periódicos têm séries de Fourier conhecidas, qualquer combinação linear destes sinais resulta numa combinação linear dos coeficientes das séries.
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Deslocamento Temporal: Um deslocamento no tempo de um sinal resulta numa rotação de fase nos coeficientes. Assim, se deslocarmos o sinal em , os coeficientes multiplicam-se por .
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Inversão Temporal: Inverter um sinal no tempo equivale a inverter a sequência de coeficientes: .
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Escalonamento Temporal: Alterar a escala de tempo muda o período do sinal e a frequência fundamental, mas os coeficientes mantêm-se inalterados.
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Multiplicação de Sinais: Multiplicar dois sinais periódicos no domínio temporal corresponde a uma convolução discreta dos seus coeficientes no domínio da frequência.
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Conjugação: O conjugado de um sinal resulta nos coeficientes conjugados e invertidos: .
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Sinais Reais: Se o sinal é real, os coeficientes são conjugados simétricos: .
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Sinais Pares ou Ímpares: Para sinais reais, se forem pares, os coeficientes são reais e pares; se forem ímpares, os coeficientes são imaginários puros e ímpares.
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Diferenciação e Integração: Derivar um sinal corresponde a multiplicar os coeficientes por ; integrar corresponde a multiplicar os coeficientes pelo inverso (salvo o termo DC).
Relação de Parseval: A potência média de um sinal periódico é igual à soma das potências médias de cada harmónica:
Estas propriedades são resumidas numa tabela para consulta rápida e exemplificadas com pequenos exercícios que mostram como podem poupar cálculos. A intuição é que manipulando sinais no tempo podemos prever e controlar o efeito sobre o espectro de Fourier.
3.6 Séries de Fourier em Tempo Discreto
Nesta secção, o conceito de Séries de Fourier é estendido a sinais periódicos em tempo discreto. A ideia principal é análoga ao caso contínuo, mas adaptada à natureza discreta dos sinais.
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Um sinal discreto é periódico com período se .
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A representação em série de Fourier é dada por:
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Os coeficientes são obtidos por:
Comparando com o caso contínuo, destaca-se que:
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O número de harmónicas distintas é finito (N coeficientes para período N).
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Os expoentes são amostrados uniformemente no círculo unitário.
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A periodicidade de implica que o espectro é também periódico (aliasing inerente).
São discutidos exemplos simples de sinais discretos, como sequências binárias ou impulsos periódicos, e mostra-se como se obtêm os espectros. Este formalismo é a base para o desenvolvimento posterior da Transformada Discreta de Fourier (DFT) e da FFT.
3.7 Propriedades da Série de Fourier em Tempo Discreto
Tal como na secção 3.5, mas agora no contexto discreto, são apresentadas as propriedades que permitem manipular séries de Fourier de sinais discretos:
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Linearidade: Mantém-se.
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Deslocamento Temporal: Deslocar uma sequência no tempo adiciona uma fase exponencial ao espectro.
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Inversão Temporal: Inverter o sinal inverte os índices dos coeficientes.
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Multiplicação: A multiplicação de duas sequências periódicas corresponde a uma convolução discreta circular dos seus coeficientes.
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Parseval: A soma da energia de um período é igual à soma dos quadrados das magnitudes dos coeficientes:
Estas propriedades são organizadas numa tabela análoga à do caso contínuo, facilitando o uso prático em problemas de análise de sinais e sistemas discretos.
3.8 Resposta de Sistemas LTI a Sinais Periódicos
Esta secção liga tudo: mostra como as séries de Fourier permitem analisar a resposta de sistemas LTI a sinais periódicos, tanto contínuos como discretos.
A ideia é:
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Se a entrada ou é uma combinação de exponenciais complexas, e sabendo que cada exponencial é função própria do sistema LTI, então a saída é simplesmente a soma das mesmas exponenciais multiplicadas pelos ganhos do sistema em cada frequência.
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Assim, o sistema filtra cada harmónica de forma independente, modificando a amplitude e fase segundo a resposta em frequência ou .
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Na prática, isto significa que podemos prever o comportamento de circuitos, filtros digitais e outros sistemas LTI analisando a resposta em frequência e o espectro de entrada.
A secção termina com exemplos ilustrativos: por exemplo, um circuito RC filtrando uma onda quadrada, mostrando como o espectro de saída atenua harmónicas de alta frequência — demonstrando o papel da resposta em frequência como “peneira” de harmónicas.
Secção 3.9 — Filtragem
A filtragem consiste em alterar as amplitudes relativas dos componentes de frequência de um sinal ou até eliminar alguns completamente. Os sistemas LTI (Lineares e Invariantes no Tempo) que modificam o espectro de forma controlada são chamados de filtros modeladores de frequência. Os filtros selectivos de frequência deixam passar algumas frequências quase sem distorção e atenuam ou rejeitam outras.
Como vimos, no domínio da frequência, a saída de um sistema LTI resulta da multiplicação das componentes do sinal de entrada pela resposta em frequência do sistema. Por isso, projectar filtros passa por escolher adequadamente essa resposta em frequência.
3.9.1 Filtros modeladores de frequência
Um exemplo comum está nos sistemas de áudio. Os filtros LTI nesses sistemas permitem ao utilizador ajustar o balanço entre graves e agudos. Estes filtros formam etapas de um equalizador, muitas vezes dividido em vários estágios em cascata, cujo efeito global resulta do produto das respostas em frequência de cada estágio.
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Mostram-se exemplos de curvas de magnitude em dB (20 log10 |H(jω)|), num gráfico log-log.
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Outro exemplo importante é o filtro diferenciador, com resposta em frequência H(jω) = jω. Amplifica mais as componentes de alta frequência, o que o torna útil, por exemplo, para realçar contornos em imagens (realce de transições bruscas em brilho). A aplicação a imagens bidimensionais é ilustrada, mostrando como realça bordas verticais ou horizontais consoante o conteúdo espectral em cada direcção.
No domínio discreto, os filtros LTI também são fundamentais. Usam-se em processamento digital (capítulo 7), por exemplo para separar variações de curto e longo prazo em séries temporais (dados económicos, demográficos). Um exemplo simples é o filtro média de dois pontos:
que actua como um filtro passa-baixo, atenuando altas frequências e preservando variações lentas.
3.9.2 Filtros selectivos de frequência
Estes filtros são desenhados para deixar passar algumas bandas de frequência e rejeitar outras com a maior precisão possível. Por exemplo:
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Em áudio, podem remover ruído de alta frequência.
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Em comunicações (como AM), permitem separar canais codificados em diferentes bandas.
Existem tipos básicos bem definidos:
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Passa-baixo: passa baixas frequências, rejeita altas.
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Passa-alto: o inverso.
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Passa-banda: passa uma banda específica.
As frequências de corte marcam as fronteiras entre bandas passantes e de rejeição.
A figura 3.26 ilustra a resposta em frequência de um filtro passa-baixo ideal. A figura 3.27 mostra filtros passa-alto e passa-banda ideais (observa-se simetria em torno de ω=0 porque usamos exponenciais complexas). Para tempo discreto, a resposta em frequência deve ser periódica (figura 3.28), com período 2π.
Embora úteis para especificação teórica, os filtros ideais não são realizáveis fisicamente. Na prática, usam-se aproximações com transições menos abruptas e características ajustadas a cada aplicação.
Secção 3.10 — Exemplos de filtros contínuos descritos por equações diferenciais
Os filtros contínuos reais são muitas vezes implementados por circuitos cujas relações entrada-saída obedecem a equações diferenciais lineares com coeficientes constantes.
3.10.1 Um filtro RC passa-baixo simples
Um exemplo clássico é o circuito RC de primeira ordem, com o condensador como saída. A equação diferencial:
leva a uma resposta em frequência:
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Para ω≈0, |H(jω)|≈1 → passa baixas frequências.
-
Para ω elevado, |H(jω)|→0 → atenua altas frequências.
O compromisso entre domínio do tempo e da frequência: aumentar RC melhora a atenuação de altas frequências mas torna a resposta ao degrau mais lenta.
3.10.2 Um filtro RC passa-alto simples
Escolhendo agora como saída a tensão na resistência, a equação diferencial muda para:
dando uma resposta em frequência:
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Atenua baixas frequências.
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Passa altas frequências (para ω ≫ 1/RC).
Tal como no caso passa-baixo, o valor de RC controla a forma da resposta em frequência e a velocidade da resposta no tempo. Ambos os circuitos são exemplos de filtros de primeira ordem, com transições suaves entre banda passante e de rejeição.
Secção 3.11 — Exemplos de filtros discretos descritos por equações às diferenças
Os filtros em tempo discreto são implementados por equações às diferenças lineares de coeficientes constantes. Podem ser:
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Recursivos (IIR): têm resposta ao impulso infinita.
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Não-recursivos (FIR): resposta ao impulso finita.
Ambos são muito usados em sistemas digitais.
3.11.1 Filtros recursivos de primeira ordem
Um exemplo simples:
Para entrada exponencial complexa, a resposta em frequência é:
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Para a>0 (e |a|<1), actua como passa-baixo.
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Para a<0 (e |a|<1), actua como passa-alto.
O parâmetro a controla tanto a largura da banda passante como a velocidade da resposta ao impulso ou degrau.
3.11.2 Filtros não-recursivos
Forma geral:
Exemplo clássico: filtro de média móvel.
Para três pontos:
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Atenua variações rápidas (altas frequências), passa variações lentas (baixas frequências).
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O tamanho da janela controla a frequência de corte.
Outros filtros não-recursivos podem fazer passa-alto. Exemplo:
atua como um diferenciador discreto, atenuando baixas frequências.
As principais características dos FIR:
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Impulso finito → sempre estáveis.
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Possibilidade de serem causais ou não, dependendo se dependem de amostras futuras.
Secção 3.12 — Resumo
O capítulo introduz a representação em séries de Fourier para sinais periódicos em tempo contínuo e discreto, explorando a motivação principal: as exponenciais complexas são autofunções de sistemas LTI.
Mostrou-se que:
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Qualquer sinal periódico pode decompor-se numa soma ponderada de exponenciais harmónicas.
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Aplicando um sinal periódico a um sistema LTI, cada coeficiente de Fourier na saída é o produto do coeficiente de entrada pelo valor da resposta em frequência nessa harmónica.
Isto conduz ao conceito de filtragem com sistemas LTI, incluindo a filtragem selectiva de frequência.
O capítulo discutiu:
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Filtros ideais (não realizáveis) como referência teórica.
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Exemplos práticos baseados em equações diferenciais (contínuo) e às diferenças (discreto).
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A importância de compreender as respostas em frequência para conceber sistemas que realizem filtragem conforme os requisitos da aplicação.
Adiantou ainda que nos capítulos seguintes se desenvolverão ferramentas para sinais aperiódicos e uma análise mais detalhada da filtragem.